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sábado, maio 02, 2009

Drummond - o sentimento do mundo

Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista
da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por
serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os
Homens presentes,
A vida presente.

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A infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada, cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre as mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
A ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
Chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom.

Minha mãe ficava sentada, cosendo
Olhando pra mim:
- Psiu...o acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

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O sobrevivente

Impossível compor um poema e essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja
– de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome que ninguém lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas
para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor faz-se pelo sem-fio
Não precisa de estômago para a digestão.

Um sábio declarou a O jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoraram
E matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.

Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(desconfio que escrevi um poema)

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Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
É isso que você está vendo:
Hoje beija, amanhã não beija,
Depois de amanhã é domingo
E segunda-feira ninguém sabe o que será.

Inútil você resistir
Ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
As bodas que ninguém sabe
Quando virão,
Se é que virão.

O amor, Carlos, você é telúrico,
A noite passou em você,
E os recalques se sublimando,
Lá dentro um barulho inefável,
Rezas,
Vitrolas,
Santos que se persignam,
Anúncios do melhor sabão,
Barulho que ninguém sabe
De quê, praquê.

Entretanto você caminha
Melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
Que ninguém ouviu no teatro
E as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
É sempre triste, meu filho, Carlos,
Mas não diga nada a ninguém,
Ninguém sabe nem saberá.

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Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
E o sentimento do mundo,
Mas estou cheio de escravos,
Minhas lembranças escorrem
E o corpo transige
Na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
Estará morto e saqueado,
Eu mesmo estarei morto,
Morto meu desejo, morto
O pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
Que havia uma guerra
E era necessário
Trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
Anterior a fronteiras,
Humildemente vos peço
Que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
Eu ficarei sozinho
Desafiando a recordação
Do sineiro, da viúva e do microscopista
Que habitavam a barraca
E não foram encontrados
Ao amanhecer

Esse entardecer
Mais noite que a noite.

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Congresso internacional do medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
Que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
Não cantaremos o ódio porque esse não existe,
Existe apenas o medo, nosso pai e nosso
Companheiro
O medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
O medo dos soldados, o medo das mães, o medo das
Igrejas,
Cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
Cantaremos o medo da morte e o medo de depois
da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas
e medrosas.

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Ode ao cinqüentenário do poeta brasileiro

(...)É difícil explicar
esse sofrimento seco,
sem qualquer lágrima de amor,
sentimento de homens juntos,
que se comunicam sem gesto
e sem palavras se invadem,
se aproximam, se compreendem
e se calam sem orgulho. (...)


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Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu
deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor se resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, o que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
E ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
Edifícios
Provam apenas que a vida prossegue
E nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
Preferiram (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

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