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sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Adiamento

Perdoe-nos Clarice, se suas palavras servem tão bem às bocas de tantos.

Durante a noite, Marianne acorda gritando de medo. Johan acende a lâmpada da mesa-de-cabeceira e tenta abraçá-la para a tranquilizar, mas ela se liberta a se levanta, começando a andar de uma lado para o outro. Johan espera em silêncio que diga alguma coisa.” Ela o encara, da cabeça aos pés, com terror nos olhos. Ao perceber que M. mantinha-se muda, Johan pergunta:
J:Há algo de errado?
M: Eu o matava.
J (confuso): No seu sonho?
M: É. Pela garganta. Estrangulava. Como se tivesse tal força nas mãos. Você não reagia, apenas me olhava. Não sentia dor, não pedia clemência.
J: Pensei que já tivesse superado isso. O que seu terapeuta falava sobre sonhos? Eles são óbvios!
M: Eu não tinha nenhum sentimento especial, nada relacionado ao passado. Pelo menos, não que me lembre.
J: Então por que acordou assustada?
M: No último instante, no segundo que faltava para calar sua voz, senti, eu, uma estranha dor na cabeça. Ela passou a se alastrar pelo corpo inteiro. Tudo doeu. Logo em seguida passei a ficar amortecida. Meus olhos passaram a ver menos, meus ouvidos pareciam submersos, enquanto minhas mãos...
M. Olha para as mãos, analisando cada um de seus veios, esfregando os dedos uns contra os outros, experimentando-os
J: Suas mãos?
M: Deixa pra lá. Foi apenas um sonho.
J: Você deve estar com fome.
M: Sim, vou comer algo. Você quer?
J: Não, estou com sono. Se não se importa, vou dormir.

Marianne vai até a cozinha. Abre sua bolsa onde estão os alimentos. Nenhum lhe apetece. Encontra seu caderno de anotações. Procura por uma caneta, que encontra dentro do armário da sala. Senta-se no sofá e escreve:

“Eu estava habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Ma vejo agora que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e para um futuro.

Mas descubro que não é necessário ter esperança. É muito mais grave. Ah, sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim mesma. Não se deve dizer que a esperança não é necessária, pois isto deveria vir a se transformar, já que sou fraca, em arma destruidora. E para ti mesmo, em arma utilitária de destruição.

Eu poderia não entender e tu poderias não entender que prescindir da esperança - na verdade significa ação, e hoje. Não, não é destruidor, espera, deixa eu nos entender. Trata-se de assunto proibido não porque é ruim, mas porque nós nos arriscamos. (...) Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve - está havendo em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se forjou. E isso me dá o direito maior: o de errar.”

J acorda e vai até M., abraçando-a: Está tarde, vamos dormir.
M: olha para J., eles se beijam.
J (comovido e confuso): Será que perdemos algo de importante?
M: Isso não importa mais. Vamos dormir.

Eles se deitam, J. Abraça M. Ela pega seu braço, reforçando o movimento.
M: Boa Noite.
J apenas beija seu pescoço.

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